deus é bom o tempo todo

Quarta-feira encontrei Júlio. Júlio que outrora brincávamos ser o coelhinho da páscoa por só aparecer nas páscoas apareceu pra mim perto do teatro quando me questionava sobre minha carta de admissão, quando me questionava sobre meu futuro, quando tudo era uma grande questão guiada pela maior das questões: por que tentar? E Júlio apareceu e as tentativas deixaram de ser questões e tornaram-se único caminho possível.

Paguei um salgado pro Júlio e ele me pediu pra cuidar de um grande mestre, logo depois de cantar uma música cuja autoria desconheço, ele disse ser do pai de uma atriz global, não me lembro da letra, apenas que falava da misericórdia divina. Hábito comum de Júlio ao encontrar com as pessoas, cantar, contar histórias, declamar poesia — conhece muito Fernando Pessoa, principalmente Álvaro de Campos. O que não é hábito do Júlio é pedir pra cuidarmos de alguém, ainda assim o fez e eu não questionei, não me senti insuficiente pra tomar conta de um grande mestre, muito pelo contrário, senti que estava ao meu alcance e que queria fazer aquilo. Na presença de Júlio, as questões sempre parecem menos amedrontadoras e as soluções parecem viáveis. Tudo muito místico. Tão místico que a realidade de entender que a situação do Júlio é triste e possivelmente irreversível não me faz desabar, afinal, mesmo com um dente perdido como estava quarta, Júlio ainda sorria ao cantar, sorria pra conversar e sorria ao ser relembrado. Júlio sabe que deus é bom o tempo todo, mesmo que seus mensageiros sejam o tempo todo piores que ruins.

Foi esquisito decidir escrever esse texto, não sou uma pessoa religiosa, mas encontrar Júlio me fez ter certeza do título e sobre o que queria falar aqui, pena que agora não me recordo mais, só a frase que fica ecoando na minha cabeça, a frase que é a que eu mais digo: deus é bom o tempo todo. Qual? Sim ou não, depende da parte de quem. Despedi-me de Júlio prometendo cuidar do grande mestre, homem muito religioso e encontrei jovens esquisitos na rua. Deus é bom o tempo todo, na epidemia de clean girls e legendários que estamos vivendo; encontrar jovens de blusa com capuz, chapinha, cabelo pintado de preto, piercings em lugares inimagináveis é uma luz, uma prova que deus existe e é bom o tempo todo. Caminhei rumo ao meu destino, afinal estava com o tempo apertado para chegar a tempo na terapia e cheguei em ponto, Júlio me fez chegar na hora quando me parou pra conversar. Deus é bom o tempo todo.

No ceticismo que me preenche do Oiapoque ao Chuí de minhas células, sempre enxerguei ironia na frequência que eu falava que deus era bom o tempo todo e acabei acreditando que essa fosse uma base do cinismo que tem me controlado nos últimos tempos. Encontrar Júlio me fez perceber que ”muito pelo contrário”, se digo, é por crer. Se repito é pra não permitir o abalo da minha fé. Óbvio que sei que o mundo não é bom, sei que a vida das pessoas é uma merda e tudo de pior acontece o tempo todo, sei que o bom é mais raro que seu antônimo. Sei de tudo isso, mas saber não me impede de sentir o quão deus é bom o tempo todo a cada pequena felicidade, porque é onde ele mora de verdade. Não em um céu com pessoas de branco caminhando em nuvens ou qualquer dessas coisas; ele mora na fofoca inocente do trabalho, no encontro da rebeldia em tempos reinados pela higienização fascista, no tum tum quando percebe-se pela primeira vez que gosta de alguém, no reencontro edificante, nas lembranças boas, nos momentos que nos permitem acreditar que a vida vale a pena. Ele mora no Júlio. Ele existe para nos aliviar a alma, sim, essa fantasmagórica expressão que nem sabemos se existe, mas é onde sentimos o bem e o quanto deus é bom o tempo todo e esse sentimento recupera a nossa fé e nos salva do cinismo entreguista.

Não há problema algum com o cinismo moderado ou até radical pro lado certo, o problema é quando ele se torna entreguista e isso não podemos mais nos permitir ser, porque deus é bom o tempo todo e ele lutará do nosso lado nas trincheiras contra os aceleracionistas que querem tanto o fim do mundo. Todos eles, todo e cada deus estará do nosso lado, toda fé será bem-vinda quando os selos começarem a se romper e nós, o povo, ouviremos sim, o som da última trombeta. Não os que comercializam a fé, não os que matam em nome dela, não os que se aproveitam dela para obter poder. Nós, os que acreditamos que não existe qualquer big tech capaz de superar o poder divino, o divino poder de acreditar. Acreditar de forma ativa e de sermos os rebeldes que ousam ser felizes contra a máquina degoladora de sonhos. Que ousam dizer que deus é bom o tempo todo, mesmo que o tempo todo usem de seu nome nas piores falcatruas e charlatanices da história da humanidade.

E hoje é Páscoa, época da ressurreição para os cristãos e época muito importante em diversas crenças. O ponto é que esse feriado marca o renascimento; seja de um profeta, seja do próprio filho de Deus, seja do renascimento da liberdade de um povo, seja o renascimento da fertilidade da terra nos países do norte. Esse é o período que marca o fim de grandes provações e privações e abre as portas para o nascimento de uma nova era, renova a nossa fé e nos dá forças para cumprirmos grandes missões. E todo esse texto é sobre isso, para desejar a todos uma Feliz Páscoa e que possamos nos aproveitar de toda essa energia pulsante de renovação ecoando da fé coletiva (mesmo que em diferentes direções) e que saibamos que muitas quaresmas virão e é importante que venham, porque elas trazem a páscoa e elas permitem que reencontremos Júlio e digamos: deus é bom o tempo todo.

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