por que você deveria assistir? #2 Gintama
se você é um fã de animes ou só assiste um ou outro aqui porque aquele amigo que talvez não goste tanto de você te recomendou your lie in april e agora todos os seus abris são regados pelas lágrimas de retomar esta obra, gintama pode ser uma experiência divertida. agora, se você é mais do que um fã de animes e se considera fã da cultura anime, ter gintama no seu repertório é mandatório.
eram aqueles tempos, a cabeça dos jovens otacos e suas discussões eram o acalorado one piece vs naruto, com um ou outro hipster tentando forçar bleach como similar aos outros dois títulos. e, comendo pelas beiradas, vinham gintama e toriko; este superando vez ou outra a popularidade do 3 do big three, aquele se tornando eterno. uma eternidade que ainda não pode ser palpada em sua totalidade, mas muito ainda aprenderemos com gintama que, tirando sarro com seu público, com seu trabalho, com a sua cultura, com o ocidente, consigo mesmo, comigo e com você, fez-se uma grande piada. a mais séria das piadas, a mais ridícula das seriedades.
eu sou uma piada pra você?
em 2009, gintama alcançava o posto de quinto mangá mais vendido, atrás do big three e full metal alchemist. o que por si só já é uma grande marca, mas é muito mais que isso. gintama conta com capítulos inteiros com quadros repetidos e outros onde nada acontece, além de ter um anime cheio de recaps e alguns episódios de 20 minutos de uma imagem travada com apenas áudio contando a história e alguns episódios que a história é idêntica a de alguma outra obra consagrada. atingir posições altas recompensando a sua audiência com o mais puro descaso é mais louvável ainda. somos consumidores, somos mimados e queremos as nossas recompensas, quando um mangaká em vez de nos recompensar, nos oferece a sua preguiça como um presente que devemos agradecer por receber e em vez de ficarmos enfurecidos, agradecemos, é porque existe algo de muito extraordinário nisto.
e essa tiração de sarro é a grande vitrine de gintama, que vai te pegando nas piadinhas e te insere na baixeza dos personagens; um protagonista preguiçoso que não paga o aluguel e vive de bicos que ele se esforça pra não fazer, um discípulo virtuoso em tempos que sua virtude é risível e saudosista (o que torna um embate interessante de personalidade entre o mestre que aprendeu que a esperança está morta e decide viver pelo mínimo e o aluno cheio de energia e vontade de alcançar o máximo, mas sem as aptidões pra ser mais que uma piada), uma alien com força sobre-humana que tá ali só pela comida e acaba encontrando uma família. uma grande família. porque a baixeza dos personagens não acaba no trio protagonista, já que a grande maioria do elenco dessa trama é formada por personalidades à margem da sociedade e os que não estão são rebaixados (como é o caso do próprio imperador). temos um conselho do distrito liderado por uma okama (identidade similar às travestis na américa latina), uma dona de boteco, uma cassineira (que é substituída por uma líder de cabaré) e um mafioso. tudo que a sociedade vê com maus olhos. e é das brigas constantes da margem da sociedade entre si, que a rivalidade vai, aos poucos, tornando-se união para sobreviver em um japão colonizado por aliens e, quem sabe um dia, expulsar os seus colonizadores.
aliens depravados
nunca é comprovado, mas é escancarado que os alienígenas em gintama são uma representação dos europeus e estadunidenses que entraram a rodo no japão naquele período. inclusive, a representação de kagura enquanto alienígena, apesar de ser fenotipicamente similar aos humanos, é um jeito de deixar evidente que os estrangeiros asiáticos no japão também são estrangeiros, só não são verdes, gosmentos e tarados (kagura veste china).
e foi aqui que me apaixonei em gintama. não é de hoje que a tradição literária europeia sente um estranho tesão (leia estranho tesão como xenofobia, racismo, homofobia etc) em apresentar o seu monstruoso na persona de pessoas à margem da sociedade, ver o jogo virando é, no mínimo, muito gostoso. sei que o japão não é exatamente o funcionário do mês em lutar contra o imperialismo e a infelicidade de assistir gintama é saber que, nesse caso, a vida não imitou a arte. porque apesar dos japoneses terem sofrido com a chegada dos estrangeiros no final do século xix, eles nunca foram colônia, e usaram do conhecimento depravado e cruel que seus novos imigrantes trouxeram para fazer o seu próprio imperialismo com requintes de crueldade ainda piores por todo o leste asiático, sem nunca retratarem-se ou sequer reconhecerem os crimes cometidos.
apesar disso, segue incrível, a representação de europeus e estadunidenses enquanto alienígenas viciados em jogos, sexo e drogas. principalmente, a maneira como esses aliens vêm o povo nativo como selvagens, como uma raça inferior ao ponto de um destes aliens querer comprar humanos pra sua coleção exótica. assunto que não deixou de ser atual, por mais absurdo que seja, existe um mercado de adoção étnica que opera em alta e se torna instagramável se apresentar como white savior. (nada contra a adoção étnica de verdade, muito pelo contrário; tudo contra o que acontece hoje com estes ricaços que acham de bom tom comprar humanos pra brincar com seus filhos ou expor em uma vitrine digital como sinal de virtude)
4 faces da derrota
um dos principais acertos de gintama é tratar divergências entre quatro personagens que enfrentam, cada um a sua maneira, o peso da derrota. no anime, quando houve a proibição do uso de katanas, vários samurais lutaram pelos seus direitos e eles foram derrotados, quatro deles são extremamente relevantes pra história: gintoki sakata (o protagonista), takasugi shinsuke (o principal antagonista a maior parte do tempo), katsura kotarou e tatsuma sakamoto. enquanto gintoki lida com a derrota vivendo pela lei do mínimo esforço; takasugi corre atrás da revolução armada e sangrenta, katsura vive tentando organizar a população em protestos infrutíferos e sakamoto se entrega à pirataria.
às vezes sentimos uma raivinha por eles não se unirem e combaterem os aliens? mais que só às vezes. mas acho que é isso que torna essa relação tão poderosa (narrativamente falando), porque apesar dos aliens serem claramente os seres mais repugnantes daquele mundo, muitas desavenças precisam ser resolvidas fora do macro-ambiente, muita história, muita picuinha, muita treta está em aberto; seja entre estes quatro samurais, seja entre os quatro líderes de distrito, seja entre a própria população e a bagunça causada pela abertura do país aos aliens. e gintama não romantiza a revolução, não faz todo mundo se unir feliz e contente e expulsar os inimigos com a força da amizade. o anime foca justamente no contrário, em retratar o cotidiano das pessoas se adaptando às novidades e, na maioria das vezes, sendo engolidas por elas. não atoa os bordéis e cassinos estão sempre lotados e os personagens são quase todos propícios a cair em vícios.
junto dos quatro samurais vale também ressaltar o shinsegumi, uma polícia especial que recebeu autorização do governo pra portar espadas e essa seria a quinta face da derrota. porque os samurais do shinsegumi são contratados pra lutar contra a cultura samurai, eles são traidores de seus mestres e o anime trata muito bem esse sentimento conflitante nos personagens que, apesar do sentimento culpado pela posição que ocupam, seguem a vida do jeito que dá e fazem vista grossa aqui e ali pra aliviarem o fardo que carregam.
gosto muito dessa parte porque 1) parece muito com as picuinhas que vemos nos campos progressistas hoje em dia e gintama já mostra que a solução não é parar de brigar, mas resolver os problemas pra agir com geral junto e 2) me faz pensar quem eu seria se tivesse perdido uma batalha contra a opressão… eu tentaria enfrentar uma guerra sem aliados? eu ficaria colando cartaz em poste? eu abandonaria a esperança por completo? eu investiria no comércio ilegal? eu trairia minha essência? o melhor é que eu nunca sei a resposta e gintama me faz me sentir um merda por não ter uma resposta certa pra uma questão que deveria ser simples se pensarmos superficialmente, mas se tem uma coisa que gintama não é, essa coisa é superficial. (apesar das piadocas e gracinhas)
as mina do job também são do job
a prostituição é um dos temas mais delicados de falar sobre, uso como exemplo minha experiência pessoal com anora; quando o filme venceu o oscar, acompanhei de perto o debate e ouvi todos os pontos de vista que me foram apresentados com atenção e cuidado. qual a conclusão? jamais vou assistir anora. não porque as pessoas que odiaram me convenceram, mas porque tenho medo. medo de concordar com um lado ou com outro, abstenho-me da responsabilidade ao não assistir. “ah, mas não tem discussão, prostituição é ruim e tem que acabar, ponto”, ok, esse ponto de vista me convenceria sem argumentação se fosse uma coisa tão simples assim acabar com a prostituição. “não, porque a prostituição é um trabalho importante pra emancipação feminina”, se o argumento de defesa for esse, eu estou com o ataque, porque isso é puro libfem de pior categoria. o ponto é que, vivemos em uma sociedade de exploração e o que for passível de ser explorado, será. e acredito que seja um pouco frio falar sobre prostituição e deixar a prostituta de lado; tanto na opinião, quanto na análise sobre a pessoa, a mulher que trabalha contra ou a favor de sua própria vontade. e isso é uma coisa muito complicada de se fazer tendo em vista que 1) é impossível simplesmente acabar com a prostituição e 2) estamos falando de pessoas, das mais marginalizadas das pessoas.
e gintama trata o tema como trata todas as coisas em si, com leveza e humor, mas acima de tudo, sem fazer esse recorte que alguns insistem em fazer de desvincular a prostituição da posição de trabalho, ou reduzirem este trabalho ao submundo dos temas que nunca devem ser tocados.
naquela sociedade de alienígenas, as prostitutas sofrem com a fetichização e com a labuta de terem que satisfazer aqueles seres grotescos. o que não as impede de formarem sindicatos, de se organizarem, de treinarem a própria defesa e, quando necessário, abrigar seus compatriotas longe dos olhares ferozes dos alienígenas. o que não é muito diferente do papel que elas desempenharam em grande parte das revoluções. vezes sendo espiãs com informações privilegiadas de poderosos em momentos desguarnecidos, vezes refugiando foragidos, vezes assassinando, vezes investindo na educação das novas gerações. não importa a maneira que elas lutam, em toda sociedade que foi necessária uma batalha contra um grupo de pessoas com mais recursos e influência que a oposição, houve uma puta se posicionando com suas próprias armas a favor da revolução. e gintama deixa claro esse papel, mesmo tendo que fazer tudo de maneira muito sutil, porque, né? um anime com classificação etária 14+, não pode se aprofundar em um tema desses. mas ainda bem, porque essa sutileza, com o humor sempre em voga, fazem com que o debate possa passar até despercebido, mas deixa evidente que não se pode subtrair o job das minas do job, porque não importa qual o trabalho, elas seguem trabalhadoras e não existe união dos trabalhadores que exclua uma parcela da população.
(deixando claro que o papel do cafetão ou da cafetina não é o ponto do discurso aqui e estes devem ser tratados de acordo com as explorações que proporcionam)
em resumo, gintama é um anime de palhaçada. não esperem que, por colocar travestis no poder, o anime as vá representar da melhor maneira possível, porque não vai. tem muita coisa problemática em como gintama representa as suas comunidades marginalizadas, tem muita coisa problemática em como gintama aborda temas sérios, tem muita coisas problemática em como gintama é gintama. o ponto principal é que ninguém sai ileso de gintama. o gintama bate em todo mundo, atira pra todos os lados, nunca enfrenta os vilões principais daquela sociedade e nem se propõe a enfrentar. ele se trata como piada com muita seriedade, seriedade suficiente pra nunca se levar o bastante a sério a ponto de deixar de ser uma grande bobajada. não baixem as suas guardas assistindo gintama, porque quando você achar que algo está sério demais, logo será surpreendido com a maior bobajada que já viu na vida.
enfim, assistam gintama, vocês não vão se arrepender, porque é uma obra que fala muito sobre a indústria dos animes em si no meio de suas piadas e, se alguma piada for ofensiva demais, tentem relevar, porque o próprio mangaká se coloca enquanto personagem da obra como um gorila calvo e vagabundo. então não levem nada pro coração. agora se eu não consegui te convencer a assistir gintama, não se preocupe que logo mais tem a próxima recomendação.
