tudo que escrevemos
é sobre nós mesmos
então te homenageio
com seu deixado veio
ontem tive uma perda que estou com dificuldade de processar. é uma perda que há muito não fazia parte do meu dia-a-dia, além de meu sentimentalismo estar em fase de recuperação e não sei direito ainda o jeito certo de se sofrer. Por isso, resolvi escrever um texto de despedida, onde possivelmente falarei mais de mim que dele, mas falarei de partes minhas que estão profundamente ligadas aos melhores valores aprendidos em épocas onde o aprendizado não era a minha praia.
faz tempo que eu não reclamo do meu passado, que nunca foi triste, mas sempre muito chato. não estou aqui para reclamar, mas narrar e, talvez seja difícil fazê-lo sem parecer um pobrezinho sofrido, mas tanto faz.
muitas eras atrás, quando eu era um menininho com seus 11 anos, o destino me reservou os fardos de ser o mais velho e mais passivo entre primos e irmãs. Desta reserva, herdei o caminho do boteco; no primeiro ano ficando presente para meu avô ir almoçar, logo depois o almoço tornara-se uma sesta com um descanso que algumas vezes durou até as 19hrs. logo depois, o caminho herdado se tornou função e eu não ficava mais atrás do balcão para proporcionar o descanso merecido, ficava porque tinha que ficar, por muito tempo — em horas e dias e meses e anos. É quando chegamos a data importante para esse texto.
após terminar o terceiro ano, percebi que eu nunca tinha, sabe, brincado. e o destino me deu uma oportunidade que dá para poucos e colocou na minha vida uma era de eternas brincadeiras, o problema é que pro meu cérebro aquilo foi uma coisa esquisita que até hoje não sei como processar. eu estava naquela fase esquisita dos 17 aos 21 e eu tinha dois grupos sociais: 1) a galera que brincava comigo, majoritariamente flutuando os 13 e 2) o boteco, com uma média etária que passava dos 50. na época, revoltado que só, não conseguia parar de pensar em como as conversas com os catarrentos eram edificantes e eram mesmo, a gente falava sobre o universo, sobre política, sobre música, sobre jogos, sobre religião, sobre culinária, sobre séries, sobre livros (inclusive comecei a ler por culpa de uma catarrenta), sobre o tudo e sobre o nada e aquilo me ajudou a me perder e me encontrar tantas vezes que nem sei contar. enquanto as conversas no boteco eram álcool, futebol e mulher. peter pan invadiu minha existência com muita força numa vontade absurda de nunca crescer, sem saber que tudo que eu estava fazendo desde o inicio era crescer, mas de um jeito diferente, num ritmo todo torto, mas crescendo; não pra cima ou pra frente, para as tangentes.
contextualizações feitas, nesse meio havia uma pessoa no mundo que eu queria fugir (a vida adulta) que me edificava de maneiras que eu não conseguia entender naquele tempo. não que eu não tenha aprendido nada com os outros, porque aprendi muito e hoje sou muito grato a todo esse aprendizado passivo, mas essa pessoa era especial. tão especial que eu demorei muito pra entender que a instituição policia militar deveria ser odiada com todas as forças por culpa dela. porque o sargento, na época cabo, Luis era um cara que eu achava muito foda. e um cara que me ensinou coisa pra caralho.
um cara que cozinhava dois “arrozes”, porque precisava que um fosse feito sem alho pra agradar o paladar da esposa. um cara que repreendia todos os bebuns quando algum discurso misógino destacava-se no balcão, um cara que mandava marcar cachaça pra geral na conta dele, um cara que via o dito bandido como a vítima da sociedade que ele era e, apesar de ter como função de vida combatê-los, ele pregava só fazer o estritamente necessário e sempre que a comunidade exigia seus serviços para fechar algum e ele percebe-se que aquele algum não oferecesse mais perigo pra sociedade que pra si mesmo, ele optaria pelo que ele chamava de “dar uma voltinha”. não sei quanto de verdade havia nesses dizeres, mas ele dizia que dava uma voltinha na cidade, achava um lugar distante, pagava umas duas doses de vila velha e deixava em algum lugar seguro.
e acima de tudo, ele era a alma de um lugar que clamasse por comemoração.
seja para organizar um campeonato de sinuca, pra fazer um churrasco na casa de alguém, pra assistir uma final de um campeonato de um time que ele não torce (mas ele ia conseguir arranjar uma camisa de algum dos dois pra torcer), seja pra assistir qualquer parada, seja só pra brotar no boteco e passar lá o dia todo, mesmo com contraindicação médica. o amor dele por gente e festa era tamanho, que não importava mais nada. tudo que importa é gente e festa (porque nesta tem gente), ou seja, ser perdidamente apaixonado em gente é a única coisa que podemos levar dessa vida e ele sempre dizia que só tinha um desejo pra levar dessa vida: virar nome de rua. não sei na atualidade, mas na época ele queria que a rua se chamasse rua cabo luis e dizia que, mesmo se virasse sargento (o que aconteceu), ele queria que o nome fosse cabo luis. tomara que aconteça. porque alguém que amou tanto gente quanto ele, alguém que amou tanto a nossa vila betânia merece ser eternizado de alguma maneira.
não faço ideia do quanto a mentalidade dele possa ter mudado nesses muitos anos que nos desencontramos, mas as memórias que eu tenho são daquele cara foda e que quero e vou acreditar que se manteve assim até o final, mesmo que me provem o contrário, porque agora tanto faz, a passagem final já está cruzada e tudo que eu posso desejar é que você festeje eternamente rodeado de gente, rodeado de todos que você amou aqui e de todos que você conhecerá por aí e amará igualmente, longe das intermináveis intempéries que vivemos por aqui. você me ensinou coisa pra caralho, mesmo quando eu estava com os ouvidos fechados e, como não consigo carregar tudo comigo, vou carregar pra sempre os dois mais importantes dos ensinamentos: que sejamos perdidamente apaixonados em gente e que nunca recusemos uma boa festa. divirta-se por aí e eu faço o mesmo por aqui.
