“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.”
Bertold Brecht
impossível falar sobre qualquer lugar no mundo sem falar do lugar que pode se tornar qualquer lugar do mundo, onde estive hoje e tive a oportunidade de visitar um circo-empreendimento, um lar conturbado, as ruas com seus moradores e Barbacena. Quatro cenas, quase improvisadas, com alguns minutos para decidir o básico e duas instruções: 1) hoje estamos entrando em Brecht e 2) faça a sua cena com a frase “e se fosse você?” em mente. O resultado foi poderoso e impactante, quatro histórias criadas na hora que me faz refletir amplamente sobre elas, sem nenhuma necessidade de figurino, adereços, cenário. Apenas a viagem, para qualquer lugar. Esse é o grande poder do teatro e maior ainda o do teatro épico de Bertold Brecht, porque a viagem tira de cena as idealizações burguesas e os personagens “grandiosos” e abre espaço pra qualquer pessoa viajar. Uma viagem material, pra dentro de cena e, dentro estando, sendo adentrado.
Brecht é uma outra pessoa que vai aparecer bastante por aqui e hoje quero falar sobre ele e com isso entrar em um lugar que nos é tirado, anuviado. O teatro épico surge como uma maneira de distanciar o público da imersão no teatro e, consequentemente, afastá-lo da ideia que ele é um consumidor, um agente passivo ao que está assistindo e visa que a peça cause reflexão e seja vivenciada com a distância de uma análise e não apenas consumida com a presença de identificações sentimentais.
Se o teatro (o palco) é um lugar que pode virar qualquer coisa que quisermos, nossos corpos são outro lugar que também pode virar muitas coisas. Creio que esse é um ponto importante nesse modelo de se fazer teatro, porque ele quer se comunicar com toda a população e o principal instrumento de comunicação nas peças é o corpo do ator, um corpo protagonista de um espaço onde os personagens não existem para comover, apenas para realizar um trabalho. A identificação não acontece entre público e personagens, acontece entre trabalhador e trabalhador e nesse processo, a indução ao senso crítico tende a fazer que o público se enxergue enquanto trabalhadores e não consumidores, fazendo o movimento inverso ao da ideologia alienante.
E esse é o importante papel do nosso corpo nesse mundo, nosso corpo representa o trabalho, a produção, a prestação de serviços; um corpo que tudo faz, que move os moinhos para que o mundo possa funcionar. Um corpo que é deslocado do que é, pra serem agraciados com um “mimo” batizado consumo, aquela troca equivalente de nós damos tudo e recebemos um imã de geladeira ou um serenata de amor no nosso aniversário. E o teatro épico é uma criação que visa devolver aos nossos corpos o significado de si, um lugar que gera toda grandiosidade, um lugar que faz com que tudo gire e, após percebermos o lugar que somos, podemos compreender que pertencemos a todos os lugares e não apenas ao claustrofóbico consumo trancafiado por margens violentas que ditam as regras de tudo que podemos ou não fazer e, se saímos milésimos dessas margens, somos julgados violentos e precisamos ser podados, barrados. Somos o lugar que constrói, então destruir é nosso direito de nascença e não uma violência.