São Jorge de Flores

23 de Abril. Dia de São Jorge e é impossível para a mídia — e também para mim — que não se fale sobre outro Jorge que há pouco nos deixou, Jorge Mário Bergoglio, o Papa Francisco. Nome escolhido em homenagem à São Francisco de Assis, o santo caracterizado pela sua humildade e ajuda aos mais necessitados, tal qual Jorge, que recusou toda a pompa e riqueza dos aposentos papais e viveu seu papado questionando e combatendo o sistema atual agressivo e destruidor, não só o financeiro, como todo o sistema; tanto enquanto máquina de moer gente em prol do capital, quanto enquanto instrumento de opressão contra todas as pessoas à margem do centro da sociedade. Sistema este muito protegido e coligado à Santa Igreja que alçou à Francisco, Jorge. Que muito poderia ter mantido seu nome, pois tal qual o santo histórico, a missão de vida de Jorge de Flores foi enfrentar o Dragão que o criou.

Talvez Jorge não se sentiu bem em homenagear o seu chará pela mitologia do matador de dragões ter sido quase toda pensada e projetada no mais puro suco da islamofobia em qualquer uma de suas versões, creio que o próprio Jorge original, nascido na Palestina, envergonharia-se da maneira que a Santa Igreja deturpou a sua imagem. De toda maneira, o match dos Jorges era uma grande possibilidade, já que, se nos esquecermos da mitologia medieval que tornou São Jorge um importante símbolo das cruzadas, o homem Jorge da Capadócia, quase um século antes de São Francisco existir já era um franciscano causando espanto no império romano — dominado pela luxúria — ao doar para os pobres toda a herança de sua mãe. O ponto, entretanto, mais convergente entre os Jorges — da Capadócia e de Flores — é a luta contra o dragão, não o mitológico, o metafórico. Afinal São Jorge foi torturado e morto pelo Império Romano por em alguns documentos recusar-se a abandonar o cristianismo e em outros relatos por recusar-se a cumprir a lei de extermínio dos cristãos, de um jeito ou de outro rebelou-se contra o império que o ascendeu rapidamente à respeitável escalão, enfrentou o Dragão de seu tempo e, apesar de morto, jamais foi derrotado. O argentino não foi morto pelo Dragão de seu tempo (apesar de a última visita influente que ele recebeu ser o vice-presidente deste), mas ele escalou até a máxima posição da instituição base das opressões que regem a humanidade hoje em dia, um outro grande dragão. E, mesmo na mais alta posição, nunca deixou de enfrentá-lo.

Francisco criou um tempo onde se tornou normal na mídia e em alguns imaginários acontecerem associações entre o catolicismo e o progressismo, associações estapafúrdias pra qualquer pessoa que conhece o mínimo da história de opressão, repressão e reacionarismo da Igreja Católica, ainda assim tornou-se normal acreditarem que a Igreja não fosse o que sempre foi, ao ponto de nos espantarmos com a ascenção de um frei católico neo-nacionalista (como se a maioria deles não o fossem). Tamanho é o poder de um papa que, beirando os 90 anos, constrange positivamente uma juventude que lhe questiona se ele sabe o que é “não-binário” e ele responde que sim — na naturalidade de quem considera impossível que não se saiba sobre o assunto. Conversa acontecida na época onde juventudes nos seus 20 espumam pela boca e enraivecidas esperneiam pelo direito de serem reacionários e negarem a existência de sexualidades e orientações de gênero que não as agradem, e o pior, muitas destas juventudes se intitulam defensoras dos direitos dos mais pobres ou das mulheres. Por isso não julgo tanto as pessoas terem se esquecido de quem verdadeiramente é a Igreja Católica, afinal, seu bispo supremo consegue ser mais progressista que as ditas femininas radicais e os ditos comunistas operários.

E esse é o tamanho de Jorge, nascido nos bons ares de Flores sob a benção de San Lorenzo, outro santo morto pelo império romano, este por desacato. Por falar ao imperador que a verdadeira e única riqueza da Igreja Católica são os cristãos, tal qual Francisco, que muitas vezes rejeitou os próprios escritos sagrados pra declarar que qualquer filho que procure a Deus deve ser acolhido, independente de qualquer coisa, ou em todas as suas orações e apelos em prol do povo palestino, em tempos que seria muito confortável pra Igreja se unir o trabalho de execução que tentou por mil anos. Poderia falar por horas de Jorge, um homem com muitos pecados e defeitos, mas que se agigantou recusando o conforto e enfrentando o dragão que o ordenou papa. Entretanto, já falei demais, vou me limitar a convocar que hoje, no dia de São Jorge, independente de nossas fés ou não, que apenas leiamos e reflitamos sobre a oração de São Jorge e, se ao assumir o papado, Francisco em suas primeiras palavras rogou que orássemos por ele, antes que ele pudesse orar por nós. Que hoje oremos por nós, em nome de Jorge, o da Capadócia e o de Flores:

Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos,
tendo pés não me alcancem,
tendo mãos não me peguem,
tendo olhos não me vejam,
e nem em pensamentos eles possam me fazer mal.
Armas de fogo o meu corpo não alcançarão,
facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar,
cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.

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