(Texto retirado de um trabalho feito para a faculdade para responder “o que achamos sobre Franz Kafka até então?”, correções sugeridas não foram feitas para manter intacto o texto original produzido no momento)
É difícil escrever sobre Kafka sem chover no molhado: grande autor, revolucionou o romance, trouxe importantes discussões para além da literatura, crítico ao sistema e às burocracias que o constroem para manter as opressões, um ser humano deslocado, complexado com a sua relação com o pai e com as relações de poder (micro ou macro). E a chuva se estende em milhares de gotas equivalentes a todas as facetas do autor e às outras muitas atribuídas a ele de acordo com o crítico do momento que se sujeita a estudá-lo. Como toda lente tem distorções, é impossível saber se alguma dessas gotas é boa o suficiente em se aproximar da imagem real na cabeça de Kafka ao escrever. Por isso, vou ousar sem medo no caminho de decretar Franz Kafka o herói do absurdo.
A literatura de Kafka é abrangente nos signos e interpretações que podemos racionalizar e examinar, nenhum caminho escolhido exclui os outros e minha proposta não é mostrar o caminho “mais verdadeiro que a própria verdade”, mas falar de algo que acredito ser indissociável de qualquer caminho que possamos escolher: a angústia. A força motriz de Kieerkgaard, presente em todas as ações e reações da humanidade que almeja uma fantasmagórica liberdade e tê-la ou não tê-la sempre guiará à angústia. O sentimento que vemos não só nos protagonistas kafkianos, como em todos os seus personagens em si.
Nos protagonistas (que são mais expostos) é fácil enxergar: a angústia de Gregor Samsa por precisar chegar no horário, por tentar se comunicar, por não poder mais fornecer conforto a sua família e até por, no seu íntimo, aproveitar sua condição que permitia uma folga de seus afazeres em muito tempo; Josef K, que pula de sala em sala, de instituição em instituição, busca desesperadamente por uma conclusão do misterioso processo ao ponto de preferir perder a ter de continuar perseguindo-o; o protagonista de “O veredito” é o mais escancarado, sentimos a angústia timidamente no começo da narração e a medida que ela se torna mais íntima com o personagem até confundimos as vozes de quem narra e quem é narrado, a angústia se desenvolve como em uma panela de pressão até a explosão e expõe o inevitável absurdo da existência, que é encerrado da única maneira capaz de combatê-lo: o suicídio.
Camus descrevia o suicido como o principal problema para a filosofia do sec XX tratar e acusava Kieerkgaard de ser um “suicida filosófico” por determinar a religião como a solução para a angústia, para o absurdo. O filósofo argelino também falava de outros dois tipos de suicídios — o literal e o político. Sabemos que Kafka não se matou e pelos seus textos, apesar de pessimista quanto ao sistema, sempre foi ativo em seus pensamentos políticos (menos um suicido pra conta). Sobra o filosófico, e aqui Kafka despreende-se de Kieerkgaard, porque, apesar de um de seus personagens supostamente ter se suicidado como resposta final, essa é apenas uma linha (suposta, diga-se de passagem) na livraria kafkiana onde seus personagens estão sempre sendo confrontados por suas angústias, e o sentimento funciona como uma cola que nunca permite que a esperança de algum deles se distancie em larga escala do desespero e vice-versa. Todos têm esperanças e desesperos, mas isso não acontece de maneira desequilibrada porque a angústia serve como balança e bússola moral que torna a crítica à autoridade inevitável e o combate a esta impraticável.
Kafka construiu mundos e personagens mais absurdos que o próprio Mersault de Camus, porque ele próprio — em seu desajuste — era uma personalidade absurda, balanceada entre a rebeldia e a moral em que foi doutrinado. E se, em Camus, precisamos nos exercitar para enxergar um Sísifo feliz; em Kafka não é necessário, porque Gregor Samsa é o personagem mais feliz da história da literatura.