
Uma estranheza de escrever em português um desafio proposto em inglês é que se eu falar das semelhanças — gráficas, fonéticas e semânticas — de carry e care, vai parecer que estou apenas enchendo linguiça pra bater a meta de 500 caracteres, mas a verdade é que tudo que consigo pensar hoje quando me perguntam das coisas que eu carrego é sobre as coisas que me importo e acredito que não seja um exagero muito grande dizer que carry e care, nesse caso, são sinônimos, pelo menos pra mim. E não importa se essa importância que damos a algo seja positiva ou negativa, ativa ou passiva, voluntária ou involuntária; a partir do momento que algo nos importa, começamos a carregar, mesmo que essa importância seja a de se livrar desse peso. Ilustro essa semelhança das palavras pra facilitar a escrita, porque é muito difícil saber o que carregamos e também é difícil saber com o que nos importamos, mas é mais fácil tirar aquela prova real que aprendemos no fundamental pra conseguirmos diferenciar o que achamos que carregamos do que de fato carregamos e o que achamos que nos importamos do que de fato nos importamos, por exemplo, eu acho que me preocupo com a paz mundial, mas isso não é algo que carrego tão intimamente, então só acho que me importo. Confuso? Sim, mas esse tema é a própria confusão.
Nesse caminho consigo pensar que me importo com meus chegados, com minha família e com meus desejos, porque são coisas que carrego o tempo todo junto a mim, seja em pensamentos, em sentimentos compartilhados ou no puro prazer de carregar e ser carregado. No outro lado, carrego minhas ideias, minha bagagem de leituras, minhas vivências, traumas e prazeres, medos e confianças; porque tudo isso me é muito importante, tudo importa para eu ser o que sou ou para que eu possa superá-los para chegar onde quero chegar. E outra coisa que carrego é carvão, literalmente, e não o excluo das coisas com que me importo, porque não só a segurança financeira do trabalho me é importante, como alguns outros significados específicos pra mim, dos quais desbravarei dois.
Primeiramente, o carvão é minha absolvição e minha punição, é o fim de um processo interminável onde aceitei a sentença de culpado e, nessa aceitação, pude ser enfim inocentado e também é o fim de outro interminável processo onde minha sentença era a de inocente e, mesmo aceita, gerava um emaranhado de culpas. Um dia talvez me prolongue nos assuntos, ater-me-ei ao básico, aceitei o trabalho herdado do meu pai, pela minha própria vontade, apesar de ser em condições onde minhas opções não eram tão abertas quanto poderiam ser, mas o importante é que nunca me senti obrigado àquilo, por mais que exista sim uma obrigação na questão. Isso se liga ao meu passado, onde criminalizei e culpei por todos os meus problemas, a obrigação de trabalhar para meu avô desde muito novo; carga que carrego e só o peso do carvão sabe aliviar, porque sempre fui inocente pelas cargas do passado, mas a frequência que as culpei, traziam-me culpas que só se aliviam ao me culpar onde sou inocente. Como já dizia Milan Kundera: a insustentável leveza do ser.
O segundo ponto que o carvão me é importante é por ter me ajudado a superar um momento esquisito pelo qual passei e me importo o suficiente pra não conseguir me aprofundar, o básico é: certo dia resolvi defender a autonomia de uma amiga e isso se arrastou em semanas do meu nome na boca da galera, me atribuindo as piores adjetivações e enchendo a ficha criminal dos crimes que nunca cometi (mas alguns deles kk). Seria um período complicado, mas chegar em casa na primeira semana sem nenhum centímetro do meu corpo livre da preta cobertura de carvão me fez perceber o quanto as pessoas têm um tempo livre pra odiar seus semelhantes. Ao invés de usar toda essa energia pra odiar quem tá nos fodendo por aí ou até, sei lá, amar, pros românticos. Não, é mais fácil me odiar, do que odiar a professora que alguns deles idolatram e propagandeiam, mesmo sabendo da afinidade dela com as ideias italianas e alemãs da primeira metade do século passado rs.
Acho que dessa literalização de carregar é onde me conecto intimamente com Albert Camus (que dará muito as caras por aqui no blog), por causa do seu “mito de Sísifo” que, resumindo porcamente, se conclui na afirmação que devemos pensar Sísifo feliz ao carregar eternamente a sua pedra ao topo da montanha. Outra coisa que carrego, a pedra que simboliza um castigo divino, que nos força a trabalhar pela eternidade e que só pode ser superada da sua condição de castigo se eu conseguir ser feliz no processo. Em outras palavras carrego o absurdo, assim como carrego muitas outras bagagens teóricas e carrego obras e autores que me impactam e moldam um pouco do que sou por me importar com tudo isso.
Em resumo, care e carry são sinônimos. Literalmente (mas não só), carrego e me importo com o carvão; literariamente, carrego e me importo com uma gama de estilos, autores e obras que definem o que quero fazer; sentimentalmente, carrego e me importo com meus chegados, com minha família e com minha gente e carrego e me importo com os que maltratam estes, me importo odiosamente e carrego este ódio até que ele possa ser organizado; mentalmente, carrego e me importo com todos os acontecimentos não resolvidos do meu passado e alguns resolvidos carrego e me importo para conseguir dar o próximo passo. Por último, carrego e me importo filosoficamente com a minha gigantesca pedra, minha companheira diária nos árduos trabalhos literais, literários, sentimentais, mentais, políticos e filosóficos; minha pesada carga que se alivia quando encontro na sua presença a diversão de aceitar toda punição divina como um desafio para fazer daquela fixa e igual montanha por onde rolo minha pedra, tão inédita e tão divertida quanto a água de heráclito e que no caminho a felicidade me impeça de carregar desesperos e esperanças pesadas demais para caber em um leve sorriso.