Hoje vi um meme muito bom, o René de Kart. Uma imagem do filósofo famoso por foder a vida de dezenas de gerações sua icônica “penso, logo existo” andando em um kart e minha imediata reação foi responder “pena que ele não pode fazer curva, porque a estrada dele só vai pra um lado ou pro outro” e, seguindo o padrão até aqui do blog de deixar meus dias influenciarem na minha escrita, hoje quero falar desta estrada (a de Descartes) e também desta estrada (a que devemos todos percorrer).
Começando pela estrada de Descartes, também chamada de estrada cartesiana, não que seja uma estrada de fato, mas como aqui estou falando de estradas, então a estrada de Descartes se torna a estrada cartesiana, porque o filósofo é o Midas da filosofia, mas ao invés de tudo que ele tocar virar ouro, tudo que ele toca vira merda cartesiano. Sim, tudo, tudo entra em um status de existe o polo sul e o polo norte e uma reta entre os polos, é tudo sim ou não e, apesar de Descartes não falar diretamente sobre o bem ou o mal, fica evidente que todo seu sistema filosófico dá vasão a Santo Agostinho e, por consequência, acaba por sofisticar o racionalismo cristão que, tal qual Descartes, é “cartesiana”, mas um pouco radical, porque no racionalismo cristão existe o algo e a ausência. Exemplificando pra facilitar, existe o bem e a ausência do bem, existe o dia e a ausência do dia e, sim, isso sempre leva ao existe o masculino e a ausência do masculino. Porque estas tensões são precedentes ao santo filósofo, desde a Grécia Antiga já se falava destas tensões, mas nunca com a reta definitiva de Descartes ou com a negação de Agostinho. Eram tensões, não polos.
Nesse momento, os fãs de Descartes já estão se revirando nos seus caixões (onde a maioria — graças a deus — está) com minhas afirmações, muitos dizendo até que “estou colocando palavras na boca de Descartes”, mas estou? Na minha humilde opinião, não. Pois vejamos, a sua icônica frase representa nada além que “o pensamento precede a existência”, ou seja, nós pensamos antes de existir, ou seja, só conseguimos existir depois de pensarmos a nossa própria existência, ou seja, existe um trem mágico chamado pensamento que tá lá, jogado por aí na imensidão de um grande poderoso nada e aí puft, ele existe e a partir do momento que ele existe, o resto passa a existir. Ou seja (o último, prometo), existimos porque temos ciência da nossa existência e podemos refletir sobre ela e sobre a própria reflexão. Tão confuso, quanto chato, não atoa meu autor favorito, Milan Kundera, brinca com a ilustração de um diálogo entre Nietzsche e um cavalo que havia acabado de ser espancado e, segundo Kundera, Nietzsche havia dito para o cavalo “desculpe-nos por Descartes”. Porque sim, o pensamento cartesiano move tudo que não é humano para o status agostiniano de ausência de humanidade e, ausente da humanidade, lhes falta tudo aquilo que é atribuído à humanidade, como o sofrimento e as emoções. E tudo nessa estrada é assim, estamos no meio dela e só temos dois caminhos pra seguir, a razão do algo x ausência de Descartes e Agostinho (e também Platão, aquele arrombado) e o outro caminho é o próprio caminho da ausência, o próprio Descartes inclusive fala umas brisa torta de uma entidade maligna que tenta nos afastar da razão e que ela se manifesta nas coisas materiais da vida, tudo que nossos sentidos percebem está embebido dessa malignidade querendo nos afastar da verdade (aqui eu fui bem porca pra falar sobre isso, porque é mais complicado e mais insuportável ainda que o “Penso, logo existo”, então sintam-se poupades da tortura.)
E essa estrada é um porre, não um porre gostoso que acaba com uma cadeira de bar quebrada nas suas costas depois de você fazer 7 amizades, 3 destas doguinhos da rua, e ter compartilhado seu maior trauma em uma mesa com uma dúzia de estranhos e ter ligado pra umas quatro ex, não, é um porre mesmo, porque ela exclui tudo, inclusive a própria estrada, porque se só aquela estrada tem valor, então estradas não servem para nada, porque qual a utilidade de uma estrada que leva apenas a dois destinos e um deles é o que devemos tomar cuidado para sabe-se lá como não darmos uma meia volta e começarmos a andar pro lado invertido do que devemos ir? E quando chegarmos ao destino? Não precisa mais da estrada, né? Porque quanto mais longe do destino, mais perto estamos de onde não devemos estar, então é uma estrada que podemos seguir e seguir e seguir e mais nada, só isso mesmo, só seguir e, se alguém gosta de curtir o caminho, cuidado, porque esse gosto significa que você está sob a influência dos demônios sensoriais e seu carro deve tá metendo a ré sem você saber.
E esta estrada? A outra, aquela com vários caminhos, bifurcações, emaranhados, retornos, destinos, melhor ainda, aquela que tem trilhos e trens? Uma ferrovia no oceano? Por que não? Um metro, trem bala, trem flutuante e dali você sai a pé por uma estrada que sobe e desce e fica reta e depois volta pra pegar algo que esqueceu na estação e decide — por que não? — pegar uma bicicleta e andar numa ciclovia e faz a sua estrada sem rumo ou com rumo, tanto faz. Chega onde quer e descobre que não queria tanto assim, vai pra outro lugar no veículo que decidir ou sem veículo algum ou, sei lá, só fica parado no caminho observando o céu, sentindo o vento bater na cara sem sequer cogitar que o tato da sua face ao receber a brisa é uma enganação. Sentir o cheiro de merda fresca ou de um lanche, experimentar um chocolate novo ou dar uma chance pra couve-flor frita e depois descobrir que gosta dela cozida também, com um azeitinho e brócolis com tomate pro acompanhamento, um purezinho de mandioquinha salsa, degustar com a boca cheia e, adivinha, não se preocupar se a merda fedida ou a comida gostosa são reais ou não, porque não importa o que a razão mágica cartesiana diz, você está vivo, muito antes de pensar, muito antes de fecundar um óvulo e muito depois de ir pra vala funda e não na forma de uma amoeba racional deificada resumida no pensar, não, você está vivo pelas ações, pelas sensações, pelas conexões, por tudo que alguém fez, sentiu ou vai fazer ou sentir, por toda estrada que alguém um dia ousou pegar, sem se preocupar com destino ou se preocupando, ou preocupado se se preocupava ou não, ou tanto faz, porque é impossível mensurar todas as estradas e todos os caminhos, é impossível quantificar a infinitude e quando tentam fazer isso com dois polos deixa de ser apenas impossível e se torna patético, risível, ridículo. Se torna toda a ausência que eles tanto temem? Talvez, mas pra mim tanto faz, porque eu não acredito na ausência, minha única fé é a presença e ela não é sobre credos, é sobre sentir e sobre caminhar eternamente em todos os sentidos, direções e em muitas mais dimensões cartográficas que possamos imaginar. Esta estrada é a única que quero andar, ciente que de única ela nada tem.