Hoje acordei com uma estranha e insistente vontade de ouvir “vivir sin aire” do Maná, ouvi algumas vezes antes de trabalhar, cantei esgoelado, gritei pro mundo palavras de amor que nem sei se um dia senti. Uma introdução que só serve pra dizer que ouvir o espanhol da banda Argentina me fez lembrar do espanhol uruguaio de El Cuarteto de Nos, uma das minhas bandas favoritas de todos os tempos e que há muito não ouvia e resolvi matar as saudades, mesmo que isso significasse começar meu dia atrasado e como valeu a pena, valeu a pena muito por causa do tema de hoje do desafio, mas acima disso por me fazer refletir — não na prata, como a literalidade sugere.
Falar de espelho é esquisito, não sou a pessoa que repele a tecnologia, estou igualmente longe de quem a atrai ou se sente atraído por ela (ok, estou um pouco mais longe da atração que da repulsão). Ouvir El Cuarteto de Nos me fez refletir sobre outros espelhos, outras maneiras de enxergar meu reflexo; porque sempre senti nas letras da banda uma identificação esquisita e a música que eu ouvi à exaustão hoje — “lo malo de ser bueno” — talvez seja a música que preparou meu terreno interior para me apaixonar por Milan Kundera ao ponto de até hoje ele ser meu autor favorito. Encontrar identificação na música e em suas contradições pode ter sido apenas um reflexo do que já havia em mim ou um influenciador do que eu viria a ser, não sei responder, mas lendo Kundera, a identificação não poderia ser mais pontual, seja pelo que já se havia criado ou porque o criado é um tanto criação.
Não sou grande entendedor de física, por isso não sei quanto à veracidade do que o espelho reflete, ou o tempo dela, ou se ele reflete o passado, ou o futuro, ou se ele cria uma imagem que será refletida e moldará o que nossos olhos veem e a partir dali, o visto se tornará refletido e aceitado como vero. E, se não entendo como um espelho literal funciona, não posso pretenciar entender o funcionamento de um espelho metafórico do que sou e nem tentarei.
E já adianto pra vocês que esse texto será mais um incompleto, pois ao pesquisar sobre El Cuarteto de Nos, descobri que a banda lançou um álbum chamado “Habla tu espejo” e ri bastante da situação por hoje estar falando de espelhos e o álbum que não conheço (porque o último e que mais ouvi foi o ”Porfiado” de 2012, enquanto ”Habla Tu Espejo” é de 2014) tem espelho no nome. A risada não durou muito, porque hoje seria um dia corrido e não teria como ouvi-lo com atenção pra trazê-lo ao texto. Mas fica a menção honrosa e o compromisso de um dia falar dele.
Quero só falar corridamente de outros espelhos que me assisto: Demócrito sendo o mais antigo deles, com tão pouco conteúdo sobre ele, exceto a sua teoria atômica (que era possivelmente de Leucipo) e a sua possível morte abandonada em bebedeira e risadas condizentes à sua alcunha de “o filósofo que ri”; depois de um grande salto, penso em Moliére e seu humor sofisticado ao ponto de ser, com raríssimas adaptações, atual até os dias de hoje; gosto de Cervantes, mas só consigo ver espelhos nos ditos romances, a partir do momento que se tornam românticos com Goethe (calma gente, não vou me matar de amor, foi só uma fase esse, juro), autor e pensador que me vejo em tudo, não só nos romances e, apesar de os sofrimentos terem sido só uma fase na minha vida, não posso dizer o mesmo do resto da obra; e após outro salto chegamos a Camus e Kundera, que me apresentaram o absurdo e as contradições capazes de derrubar por terra o “se a é a, então a não é não a” aristotélico que me guiara até ali e sumira do reflexo do meu espelho desde então. O que é engraçado, porque o que outrora fora um reflexo tão forte e logicamente (de maneira literal) inquebrantável, desvaiu-se de modo que me faz duvidar sempre dos meus espelhos da atualidade e, se essa dúvida têm esse poder, talvez ela tenha também o poder de um dia minha afeição pelos literais reflexos superar a rejeição de tal modo que me apaixone pelo que vê nele. Quem sabe né? Mas assim, se eu aceitei com tranquilidade que às vezes “a” pode sim ser ”não a” e “a” simultaneamente, eu posso aceitar qualquer coisa e, se não for tão fácil assim aceitar, é só construir algo aceitável (ou mais que isso).